EU, POEMA
na boca aberta
da coragem
pariu-se a si mesma
a mulher-palavra
recém-nascida
acolheu-se
a si mesma
numa cantiga
de acordar
a melodia
ouviu-se
a si mesma
na encruzilhada
e pariu revoada
nenhum
sinal
de rima
ou métrica
outorgadas
somente
rastro selvagem
de voz assertiva
e palavra dançada
de mulheres-poema
artistas de si
AINDA HOJE
sentada
frente a frente
com a imensidão
de minha solitude
agradeço
agradeço
pois revisito
meu escuro quintal
mãos geladas
pés embarrados
bem ao centro
desse jardim invernal
vejo tudo encharcado
e escarro:
regar meus próprios pântanos
estenderei
minhas poucas roupas
no varal
e deixarei
minhas sombras
quararem
ao sol
de minha observância
com elas brincarei
e gargalharei
ainda hoje
FIANDEIRAS
conta-me, irmã
com que linha
qual fio
verdade
ou genuíno desígnio
fiaste o tecido
do teu próprio
destino
ODOYÁ
sou mar
percu(r)ssivo
de memórias
oferendas
e travessias
minhas águas em movimento
minhas marés violentas
guardam mensagens
me comunicam
pranto, gozo
sangue e suor
me despem
te alcançam
meu verso
é o som
do meu corpo
d´água
é o sussurro
de minhas
ondas
quebrando
à beira de mim
AGUARÁ
o êxtase reprimido
a alegria interditada
a queixa submersa
o grito sufocado
a tristeza escondida
o luto não vivido
e a praga não rogada
desabarão
sobre os telhados
em enxurrada
invadirão
ruas silentes
praças vazias
entrarão
pelas frestas
das portas fechadas
lavarão
os pés descalços
de esquecidos indigentes
e crianças adormecidas
matarão
a sede
da oculta terra
da árida terra
da grande cidade
rebrotarão
as sementes
do novo
ávidas
da chuva
de nossa
verdade
AUTORREVOLUÇÃO
sejamos agulha
desejo quente
em ponta fina
para rasgar
tramas já tecidas
e descoser
velhos paradigmas
COMPOSTAGEM
depois dos 30
vivi a raiva
como poderosa
ocitocina
a ira trouxe ao corpo o não
contraiu montanhas
fraturou o abrigo do antigo
tomou-me o balanço da rede
tirou-me o chão batido
ainda assim, a ira arou
meu caminho ao sim
na barra do dia
a terra, refeita,
abraçou-me
devolveu-me
afrouxou
um profundo
respiro
depois dos 30
a raiva foi queda, destruição
foi desassossego
catapulta
engenho
gume
paixão
adubo e cultivo
de minha próxima
revolução
MULHER
tua fala desaloja
a poeira
dos cômodos que,
por medo e silêncio,
não ocupei
tua fala abre
janelas
e traz à vista
toda a vida que,
por medo e silêncio,
não cultivei
tua fala arrasta
os móveis da casa
e devora,
por fome e coragem,
as estruturas
que não arquitetei
HAPPY ENDING
um poeminha disruptivo
à minha lua em libra
caiu do meu olho
e, com requintes
terapêuticos
de crueldade,
me disse assim:
matarei em ti
a boa moça
que a tudo
apazigua
e a todos
agrada
ENCRUZILHADA
passado
presente
e futuro
transfronteiriçam
dentro de mim
no botão da minha flor
no breu do meu porvir
jazem luto e guiança
memórias e sonhos
de minha particular
ecologia
processos minguam
processos crescem
concomitantemente
adentro
a boca
da mata
coabitam-me
uma clareira aberta
recém-parida de
podas violentas,
estratégicas
e a obscena oferenda
do perfume da flor,
filha-êxtase
de minha própria
abertura
bem aqui
a incansável dança
dos tempos e corpos
de minha liberdade
me transfonteiriçam